Através do futebol, o Brasil mostra ao mundo sua face violenta

Futebol
O Redação Sportv desta quarta-feira apresentou o mais recente relatório do Observatório da Discriminação Racial no Futebol. O estudo mostra que, em 2022, o número de casos relatados subiu mais de 50% em relação ao ano anterior.
É importante passar por este dado para analisar um dos tantos aspectos envolvidos na vergonhosa noite de terça-feira, no Brasil x Argentina do Maracanã. Uma noite, aliás, que serviu para provar que existe vergonha em futebol. E ela não está ligada ao resultado esportivo do jogo.
Nas últimas temporadas, dirigentes, jogadores e torcedores brasileiros têm manifestado revolta contra atos racistas sofridos quando nossos clubes visitam vizinhos sul-americanos. É importante levantar a voz, denunciar, enfrentar, cobrar punições rigorosas. Mas o momento exige que o Brasil faça um duplo exercício: manter a capacidade de se indignar com as ofensas sofridas fora do país, mas ao mesmo tempo olhar para si próprio. O racismo está aqui, e o futebol brasileiro é uma das tantas plataformas em que ele se manifesta. Assim como serve de ambiente para abrigar tantos outros crimes de ódio.
Policial atinge torcedor argentino no Maracanã
André Durão
Enquanto CBF, Polícia Militar e Maracanã tentam empurrar, cada um para o colo do outro, a responsabilidade para o desastre que foi a organização do Brasil x Argentina, é preciso refletir sobre como nos tornamos um ambiente hostil para visitantes. Por décadas normalizamos comportamentos violentos no futebol, a ponto de nos vermos anestesiados diante de incidentes em jogos de clubes. Ocorre que a terça-feira viu uma nova fronteira da selvageria ser desbravada. Os jogos de seleções, as partidas da seleção brasileira eram um ambiente distinto, a salvo das gangues organizadas, da intolerância que nos marca como sociedade. Descobrimos que não mais. Dentre tantos aspectos complexos que cercam o incidente, há um componente que o Brasil vem abraçando: a xenofobia.
Nos últimos meses, torcedores do Argentinos Juniors, do Boca Juniors e da seleção argentina foram covardemente agredidos, alguns na praia por grupos violentos organizados, outros espancados em reações policiais excessivas, perversas. A intervenção da polícia no Maracanã, na terça-feira, se dá após um conflito iniciado quando torcedores brasileiros vaiaram o hino argentino. É cada vez mais difícil sustentar a imagem do país festeiro, amável com seus visitantes. O Maracanã foi capaz de difamar um ídolo argentino que já está morto e de entoar um insensível “uh, vai morrer” quando policiais começaram a distribuir golpes de cassetetes nos argentinos. Era quase uma celebração da violência. Deflagrado o conflito, a reação desproporcional da polícia fez pouca coisa além de espalhar pânico e tornar iminente o risco de uma tragédia.
O futebol reflete a sociedade, mas tem sido capaz de amplificar nossas patologias. Porque tem sido através dos jogos de competições sul-americanas que têm sido noticiados os atos racistas contra brasileiros ao redor do continente. E esta parece ser a única modalidade de racismo que de fato impacta uma parcela do brasileiro branco médio. Porque envolve a paixão clubística e porque, muitas vezes, é direcionada contra brasileiros brancos capazes de viajar para o exterior para ver seus clubes.
E este é um componente importante na ampliação das tensões quando vizinhos sul-americanos nos visitam: brancos se apropriando de um racismo que jamais os incomoda como pretexto para satisfazer seus instintos violentos. Não é este sentimento que explica tudo, mas parece claro que aí está um dos elementos que compõem o pano de fundo de uma onda xenófoba crescente em estádios brasileiros. Somos uma sociedade racista, em que pouca gente de fato se preocupa em combater uma lógica excludente e discriminatória. Mas no território livre e de leis próprias do futebol, a sensação é de que o racismo tem servido de justificativa para a xenofobia.
A mistura se revelou explosiva na terça-feira. Porque aqueles policiais que se colocaram entre brasileiros e argentinos que brigavam, não tiveram dúvidas de como agir – afinal, já é corriqueiro no Brasil ver o policiamento de estádios ser agressivo com visitantes. No Maracanã, os agentes subiram as escadas da arquibancada decididos a fazer aquilo para que foram treinados: bater, mesmo quando aparentemente a situação parecia se controlar. E, antes de fazê-lo, tampouco duvidaram de virar apenas para o lado direito. O espancamento, sem dó, foi todo reservado aos argentinos. Em dado momento, o trabalho da polícia já não parecia ser separar os brigões, mas desferir golpes nos visitantes. Os brasileiros que sofreram não foram os que trocaram sopapos com os rivais, mas famílias e crianças comprimidas contra uma parede por obra de uma ação policial que apenas amplificou o medo.
É um tanto comum olharmos com um certo ar de superioridade para o restante do continente, como se nos considerássemos mais desenvolvidos. O futebol tem vendido ao mundo a nossa face mais violenta. O Maracanã viveu uma terça-feira de muitas vergonhas, e a derrota do Brasil passou longe de ser uma delas.