Após despejo, entidades se mobilizam para manutenção de sítio-escola na mais antiga fazenda de agricultura não convencional do Brasil

Brasil
Estância Demétria, situada em Botucatu (SP), abriga um sítio-escola de agroecologia com banco de 1,5 mil sementes crioulas. Associação de Agricultura Biodinâmica, responsável pelo trabalho há quase 40 anos no local, procura nova sede. A Estância Demétria fica situada em Botucatu (SP)
Divulgação
O despejo judicial de um sítio-escola de agroecologia tem mobilizado entidades nacionais e internacionais para a manutenção do trabalho agroecológico realizado na área da Estância Demétria, considerada a mais antiga fazenda de agricultura não convencional do Brasil.
Uma liminar, no último dia 7 de novembro, determinou a reintegração de posse da área, que fica em Botucatu, no interior de SP, e despejou a Associação Brasileira de Agricultura Biodinâmica (ABD) do local.
A entidade é responsável por um sítio-escola de agroecologia que possui um banco genético de 1,5 mil espécies de sementes crioulas, um dos mais importantes do país, segundo especialistas.
“O patrimônio genético da ABD com mais de 1.500 variedades diferentes é da humanidade. Elas é que trazem a segurança nutricional e alimentar aos agricultores. Além da liberdade de poder produzir sua própria semente, adaptada a sua realidade”, diz Rachel Vaz Soraggi, vice-presidente da ABD e consultora em agricultura biodinâmica e orgânica.
Área ocupada por Associação Brasileira Agricultura Biodinâmica era de 4,5 hectares
Arquivo Pessoal
Com uma área total de 187 hectares, a propriedade rural pertence, desde 2015, à empresa Hermes Empreendimentos Imobiliários, que cedia 4,5 hectares à ABD por meio de um contrato de comodato. A concessão gratuita, no entanto, não foi renovada e a empresa do setor imobiliário foi à Justiça solicitar o terreno de volta.
Em virtude do impasse, entidades como Movimiento de Agricultura Biodinámica de Uruguai (MABDU), Asociación de Agricultura Biodinámica de Colombia (ABD Colômbia), a Articulação Paulista de Agroecologia (APA) e outras instituições nacionais e estrangeiras publicaram cartas de apoio à ABD.
Uma petição pública pela permanência da Associação Brasileira de Agricultura Biodinâmica no território foi aberta e já ultrapassa cinco mil assinaturas. Nas redes sociais, famosos como o ator Marcos Palmeiras também se pronunciaram sobre o caso.
Sítio-escola de agroecologia possui banco de 1,5 mil sementes
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“A ABD é uma associação muito importante para os produtores de orgânicos, na produção de alimentos no Brasil, são grandes incentivadores das sementes de crioulas, de tecnologia de produção biodinâmica, orgânica.. Então, eu queria fazer um apelo para que a gente conseguisse achar uma solução”, disse o ator.
Ator Marcos Palmeira faz apelo em prol de Associação de Agricultura Biodinâmica
De acordo com a ABD, os proprietários têm “planos avançados” para montar um empreendimento imobiliário no local. Embora entenda o direito à propriedade da Hermes Empreendimentos Imobiliários, a entidade de agroecologia gostaria de ter tido mais tempo para arrecadar recursos e comprar o terreno.
“A proposta desde o início era de compra da área, proposta negada. Levamos as peças [sementes de crioulas] para a casa de uma pessoa que cedeu uma área no seu sítio. Não há nenhum tipo de negociação [com a Hermes], porque eles têm claramente um projeto imobiliário e estavam com muita pressa de ocupar essa casa-sede. Eles mesmos já nos disseram que existe um desenho para desmembramento da área em lotes e que a ABD atrapalha esse desenho”, conta Pedro Jovchelevich, gestor da ABD há 20 anos.
A entidade entrou com um recurso pedindo a suspensão da liminar, mas a Justiça negou o requerimento.
O g1 entrou em contato com a Hermes Empreendimentos Imobiliários, que afirmou que “a ABD desocupou voluntariamente o local e está retirando todos os bens conforme ficou acertado entre as partes”. Por fim, detalhou apenas que “a divisão da Demétria obedecerá à lei de parcelamento do solo de Botucatu”.
Associação de Agricultura Biodinâmica teve sede lacrada em Botucatu
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Área recuperada e preservada
Criada em 1974 pelo empresário Pedro Schmidt, a Estância Demétria fica em Botucatu, a 225 quilômetros de São Paulo, capital.
A propriedade rural Demétria produz laticínios, hortaliças e plantas medicinais. A produção, distribuída em seus quase 200 hectares, convive com uma mata nativa que ocupa um terço da área e reúne animais silvestres e 200 espécies de pássaros.
ABD ocupa área na Estância Demétria há quase 40 anos
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“A mais antiga instituição de agricultura não convencional implantada no Brasil foi a Estância Demétria”, é assim que definiu o professor da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz da Universidade de São Paulo (Esalq-USP) Adilson Dias Paschoal, em entrevista ao Globo Rural.
Ele é criador da expressão “agrotóxico”, na publicação “Pragas, agrotóxicos & a crise ambiente”, de 1979, que foi relançada em agosto de 2019.
Em 1984, a ABD se estabeleceu no local. No entanto, o cenário era bem diferente do encontrado hoje. Considerado um pasto, a área original era degradada e sem mananciais.
Atualmente, o local apresenta sinais de recuperação e conta com uma biodiversidade de aves e mamíferos, inclusive de animais ameaçados de extinção como o tamanduá-bandeira, lontra, gato mourisco e o lobo guará.
Ao longo das quase quatro décadas de trabalho, uma nascente foi recuperada, desaguando na bacia do Rio Pardo e contribuindo para a hidrografia da região.
“O maior impacto [com a construção de um empreendimento imobiliário], do meu ponto de vista, é sobre a fauna que retornou ao local após anos de conservação da área. Outro impacto que deve ser medido é a água que toda a área Fazenda Demétria produz para a região”, opina Rachel.
Moradores da região protestaram contra retirada de ABD da Estância Demétria
Gersony Jovchelevich/Arquivo Pessoal
Para a ocupação da terra por parte da ABD, entre 1995 e 2015, havia um contrato de comodato trienal com a Associação Beneficente Tobias (ABT). A partir de 2015, a empresa Hermes assumiu a fazenda Demétria, cuja área inclui a da Associação Biodinâmica, e foi negociado um contrato de comodato de 4 anos, renovado pela última vez em 2019.
Com a decisão de reintegração de posse, a sede da ABD foi lacrada. No entanto, muitos materiais da Associação continuam no local, segundo membros da entidade. “Tem segurança na porta e só podemos entrar com a concordância da Hermes. Ainda temos lá, caixas de abelhas, nosso laboratório, câmara fria de sementes e estufas, entre outros bens”, pontua Rachel Vaz Soraggi.
“Esse banco genético foi retirado às pressas de dentro da sede e seguiram para câmaras frias emprestadas pelos agricultores da região. Porém, como não estão armazenadas em condições ideais de temperatura e umidade, temos que, urgentemente, montar nossa câmara fria. Só não sabemos onde ainda”, complementa a vice-presidente da associação.
Banco de sementes de crioulas da ABD é um dos mais importantes do país
Gersony Jovchelevich/Arquivo Pessoal
Patrimônio histórico
Tudo começou em 1982 com a criação do Centro Demeter, que se mudou dois anos depois para a Estância Demétria, quando foi batizada de Instituto Biodinâmico de Desenvolvimento Rural (IBD) vinculado à Associação Beneficente Tobias (ABT).
A atividade de certificação orgânica e biodinâmica do IBD foi iniciada em 1991. Hoje, a instituição é a maior certificadora da América Latina de produtos orgânicos e a única brasileira com aceitação em todo planeta, incluindo mercados exigentes como o bloco europeu e os Estados Unidos.
Em 1995, o IBD desvinculou-se da Associação Tobias, mudando seu nome para Associação Brasileira de Agricultura Biodinâmica (ABD).
Em 1999, a instituição se dividiu em duas: a Associação de Certificação Instituto Biodinâmico (IBD), atualmente conhecida como IBD Certificações, encarregada exclusivamente dessa função, e a Associação Brasileira de Agricultura Biodinâmica (ABD), que passa a realizar pesquisas, cursos e assessoria técnica a agricultores, principalmente da agricultura familiar.
Na opinião do professor Paschoal, a Estância Demétria deveria ser tombada como patrimônio histórico.
“Uma organização de tanta importância como a Estância Demétria, e tudo que nela se implantou de infraestrutura, de produção agrícola e de ensino e pesquisa biodinâmicas não pode ser relegada a plano secundário, como mero empreendimento imobiliário”, afirma.
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